Como tudo começou

04/01/14

A TI ANA DAS GALINHAS



Todos sabemos haver uma elevada percentagem de médicos que, a certa altura da vida,  se tornam  também  escritores. Esta profissão pode favorecer e mesmo incentivar o gosto pela escrita.  No estreito contacto com pacientes, contam-se histórias de vida onde o drama está  quase sempre presente  e, perante as quais o médico toma o papel  de um confidente. Assim, acumulam-se experiências e são apontamentos,  demasiado ricos para ficarem apenas na sua memória ou fechados numa gaveta.  
Se referi o  drama, não significa  que o caricato e divertido também não aconteçam  na relação médico doente. Alguns episódios  há que  despertam o nosso bom humor  e também merecem ser divulgadas. Enquadra-se nestes últimos o caso que hoje contarei neste post:

_O Dr. M. Pinho Rocha  (filho)  meu  conterrâneo e amigo, conceituado oftalmologista no Porto, no decorrer de  amena conversa que entremeava uma consulta com meu marido, foi abordado  por mim sobre algo que eu sabia ele escrevera. Sorridente, confirmou e, de imediato,  nos  fez oferta, autografada, de dois dos livros onde reunira, precisamente,  algumas das suas  recordações de médico.
Com a modéstia que lhe é peculiar, advertiu logo serem histórias simples, sem pretensões de maior.
Posso até concordar  que, estes livros, nem  sejam  obra literária de vulto, mas, para mim,  têm um valor muito especial. Para além de serem  o fruto da atenção, observação e, sobretudo, a  apurada sensibilidade de um homem bom, que neles imprimiu um cunho profundamente humano,   muitas das histórias, têm ainda a “saborosa”  particularidade de terem como protagonistas gente que eu também conheci. Em terras pequenas é fácil isto acontecer, como calculam!

Começando então o relato da  história que  escolhi para hoje,  direi que a Ti Ana  aqui mencionada, devia esta sua alcunha ao facto de vender aves de capoeira, no mercado da terra. O primeiro encontro dela com o autor do livro  deu-se, quando este, ainda  miúdo, caiu da bicicleta, na rua perto de sua casa. A Ti Ana, que ia a passar, terá sido a primeira pessoa a socorrê-lo. Entrou no “Marcelino”, uma taberna próxima, embebeu o seu lenço em aguardente e, com ele, limpou aqueles joelhos esfolados, De seguida acompanhou a criança até junto da família.  
Começou, deste modo, uma amizade que perdurou o resto da vida da Ti Ana.  Com bastante carinho e graça a descreve, no diálogo que existiu  entre  ele já, na condição de  médico e ela como sua doente. Estas ditas conversas eram, geralmente, salpicadas de vocábulos “bem pouco ortodoxos”, como era jeito da Ti Ana e que o médico lá ia desculpando…
Mas, para abreviar,  situemo-nos ao tempo  em que, devido ao avançar da idade,   a visão da Ti Ana estava já tão  diminuída que a sua qualidade de vida se tornava cada vez pior… Após alguma luta, este médico lá a convenceu a deixar-se operar.

Problema seguinte  foi a ida para o hospital, “uma estreia absoluta” para a Ti Ana, a qual acreditava também que, entrada em hospital…  era sinónimo de antecâmara da morte!
O médico prometeu-lhe que ela ficaria lá sob a sua protecção , mas, não deixou de lhe  recomendar também,  que naquele local, ela  devia ter a maior contenção com a língua…  
Na  véspera da operação, possivelmente entre suspiros,   lá  entrou a Ti Ana no hospital e, conforme a rotina,  administraram-lhe um clister de limpeza, facto que a deixou fula. A partir daqui, darei a palavra ao médico e o que irão ler é a real transcrição do seu livro:

…No dia seguinte de manhã pediu que me chegasse mais ao pé dela e, baixinho, contou o que se tinha passado:
« Apareceu aqui uma lambisgóia com umas coisas, disse que era para me lavar por baixo e até agradeci, mas, quando tal, enfiou-me pelo c. dentro assim um canudo estreitinho e começou a meter água ou lá o que era, a barriga começou a medrar; até que tive que dizer alto, senão ainda rebentava. A sorte dela foi não tentar fazer o mesmo na boca do corpo, porque então ficava a saber quem é a Ana das Galinhas! E já agora, diga-me uma coisa,  era preciso lavar o c. por dentro por causa das vistas?»
Não foi fácil explicar-lhe a razão de todos estes cuidados prévios, mas, cá à minha maneira, sempre tentei que compreendesse. Respondeu-me secamente:
«Agora está, está, e não se fala mais  nisso»!…

(Excerto do livro “Memórias de Médico”, do Dr.  M. Pinho Rocha)

Espero ter divertido os leitores com este delicioso episódio passado há  muitos anos atrás, na minha terra, ao tempo uma bonita vila (hoje cidade) da Beira Litoral.
 A Ti Ana já partiu deste mundo  mas o médico que a imortalizou deste modo, felizmente ainda vive e, quem sabe, se já terá escrito muito mais histórias. Vou tentar saber.
Qualquer dia trarei uma outra qualquer que irei buscar aos livros que nos ofereceu.

M.A.

2 comentários:

Quica disse...


Os médicos de província, tinham um papel muito importante, junto das populações. No desempenho das suas funções, muitas vezes o pagamento era feito com géneros (galinhas, fruta, batatas etc.). Normalmente, tinham uma vida muito modesta.

Portuguesinha disse...

eu estou a adorar estas historias e saberes.
Espero que hajam mais!

Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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