Como tudo começou

09/02/14

DOIS POEMAS DE JOSÉ JORGE LETRIA




Hoje, escolhemos para os nossos leitores dois inspirados poemas do livro “Produto Interno Líquido” de José Jorge Letria. Quem sabe se para alguns vai ser mesmo uma surpresa tomarem contacto com a poesia deste autor. Se acaso pretenderem conhecer  um pouco mais a seu respeito apenas tereis que clicar aqui.
E agora, amigos tem lugar a poesia:


OS FILHOS

Os filhos estão sempre de partida, já não ficam,
cresceram, têm pressa, têm as suas vidas,
entram e saem, já não se lembram da cor
dos brinquedos que lhes entretinham o sono,
das histórias que lhes traziam o riso.
Os filhos já têm filhos, e casas para terem
os filhos, e compromissos para honrar,
e famílias para alimentar. É assim a vida.
Às vezes fala-se, só de passagem, daquilo
qwue um dia ficará para os filhos:
os livros? A casa? O faqueiro de prata?
Tudo tem o seu tempo e a sua lógica.
É um ciclo que se cumpre e se repete.
Já foi assim antes com os pais, com os avós,
com todos os outros, mais longínquos,
de que só os retratos dão notícia, testemunho.
O tempo dos filhos deixou de ser o meu tempo.
Telefonam de longe, mandam postais,
compram pequenas coisas para nos lembrarmos
dos sítios por onde passaram, onde ficaram.
Eles partem e nós ficamos. Eles partem
um pouco mais todos os dias, cumprindo o ciclo,
escalando os degraus velozes de uma escada
que leva sempre mais longe, mais alto.
E nós ficamos fazendo contas aos dias,
acariciando os objectos do primordial afecto,
dos meses mais mansos e mais quentes da infância.
Um dia os filhos falarão assim dos seus filhos,
como quem envelhece recusando o esquecimento.


UMA CADELA ENQUANTO ESPERA

A minha cadela nada sabe de metafísica,
nem dos mistérios que a palavra encerra
enquanto corre atrás dos pássaros e das sombras
nos arbustos projectados sobre a terra batida.
A minha cadela escolhe os recantos
mais frescos do soalho para dormir
e sabe que os dias se repetem iguais e previsíveis,
sensível às ausências e à rudeza das vozes.
Com ela, a casa parece maior
porque há um fio de afecto a ligar os quartos,
a unir os gestos, a adoçar os chamamentos.
A minha cadela nada sabe de livros
nem dos mistérios que os povoam,
ignorando até os títulos daqueles que roeu
enquanto mudava a dentição.
A minha cadela foi  precedida por mortes
de outras cadelas que a doença não poupou
e que eu chorei, como quem chora sangue do seu sangue.
Sei que espera por mim à porta, todos os dias,
focinho rente ao chão, porque sabe
que eu não falto, mesmo que me atrase.
Amanhã, vou ler-lhe o que escrevi a seu respeito
e sei que chorará de comoção, embora
nada saiba de poesia e muito menos de metafísica.
Há dias em que o cão, nesta caso a cadela,
é o melhor amigo da poesia, porque sabe que ela
tem o tamanho do seu coração quando me espera.


Espero que hajam lido com prazer estes dois poemas e, quem sabe, nós tenhamos conseguido despertar em vós o desejo de irem comprar o livro para conhecerem os restantes…

M.A.

1 comentário:

Quica disse...


São homens como este, que através da sua obra, a cultura existe. Num país onde ela é constantemente varrida para debaixo do tapete.

Li um livro dele, não me lembro do título, era sobre os seus animais, deliciei-me com a descrição dos seus cães e gatos, e do amor que dedicava a cada um.

Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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